O Mundo Digital

Quando é que tudo nos escapou das mãos?

Daniel Covas
8 min readAug 24, 2023

Vivemos numa era digital. Arrisco-me dizer, num mundo mais artificial que nunca. Hoje vai ser duro, desde o primeiro momento. Com toda esta superficialidade que a virtualidade tem criado, só existe uma forma de disromper concretamente o tópico: colocando o dedo na ferida e ir à profundidade. Como tenho partilhado em já algumas outras publicações no passado, ainda que eu critique toda esta questão digital, acredito que a geração em que me insiro (1980–2000) é ao mesmo tempo a que mais está capacitada a despertar para lá da superficialidade e a que mais é escrava da tecnologia. Dois lados de uma mesma moeda, acredito. Porque existem benefícios poderosos, usando a tecnologia de forma consciente e útil. Estou a usá-los, neste momento, a escrever isto para vocês.

  • Do analógico ao digital. Do manual ao automático.
  • Inteligência Artificial vs Estupidez Natural
Photo by Robynne Hu on Unsplash

Do analógico ao automático

A “revolução tecnológica”, se assim lhe quisermos chamar, não surgiu do nada, obviamente. Surgiu de um desejo. De algo que nos é inato — Evoluir. Usando um dos nossos melhores motores internos, a curiosidade, temos a capacidade de descobrir, imaginar, acreditar e criar coisas maravilhosas. Nos últimos três séculos e meio inventámos e descobrimos tanta coisa… Leis universais, grandezas, medições cósmicas. Arranjámos forma de comunicar à distância, sem sequer nos vermos. Descobrimos a eletricidade. Criámos uma máquina capaz de registar momentos que vivemos, de forma visual. Queríamos deslocarmos mais eficazmente: começámos a pedalar, a conduzir, a voar. Fomos até à Lua. Para enumerar alguns exemplos.

Claro, tudo tem prós e contras. A própria evolução da nossa evolução (no caso, a velocidade exponencial que desenvolvemos a criar novidades) é algo que nos veio prejudicar. Não há nada de errado em fazer descobertas e em tornar o funcionamento da sociedade melhor. Porém, tudo o que cresce rápido demais, cai rápido demais também. Os primórdios da história mostram isso. Os impérios mais megalómanos foram atingidos pelo cancro que é o ego humano: a vontade de achar que merecemos mais do que aquilo que estamos a fazer e que merecemos tudo para nós, porque somos os maiores. De cada vez que queremos mais do que devemos, somos castigados de alguma forma. Na realidade, não é um castigo. É o colher das consequências dos nossos atos. A lei do retorno não falha: temos de volta aquilo que damos. De forma individual e de forma coletiva, por mais ingrato ou injusto que possa parecer. Esta dualidade é um pouco o que está na origem desta questão do mundo digital, que vos quero trazer hoje aqui.

Tudo começou nas nossas mãos. Quando surgiu, há bastante tempo atrás, a primeira versão hominídea, capaz de se colocar de pé e de começar a desenvolver o pensamento (duas das características biológicas primordiais que mais nos distinguem), começámos a usar esse mesmo pensamento para criar. A tal expressão da nossa curiosidade inata. No início, as criações eram simples. Proporcionais às necessidades. Sobrevivência, segurança, reprodução. O que se criava? Armas de caça, mecanismos de defesa, abrigos. Entretanto, começamos a fazer sons. Viver em sociedade sem comunicação verbal, algo inconcebível aos dias de hoje, era uma realidade que se começou a lapidar dentro das cavernas. Passou-se dos desenhos nas paredes para os grunhidos. Para, com a evolução, se desenvolver aquilo que hoje conhecemos como fala, comunicação através de palavras (não sei exatamente como se desenvolveu isso e não quero aborrecer-vos com detalhes que uma pesquisa no Google resolve. Sim, obrigado evolução, por termos toda a informação do mundo à distância de um clique. Algo que nos torna mais preguiçosos também. Prós e contras, novamente). Hoje em dia temos centenas de línguas diferentes no planeta. Este é só um pequeno exemplo. Podia começar com qualquer outra coisa básica.

A realidade é que, enquanto espécie, com o passar do tempo, começámos o processo de banalização dos aspetos básicos. Sem lhe dar o devido reconhecimento. Desvalorizando essas ações. A recompensa? Só na novidade. O que já sabemos, está gasto. Assim se cria uma cultura de toxicidade. A assumir que existem normas que todos devemos cumprir e saber executar. A verdadeira pergunta é: onde no caminho, entre o analógico e o digital, entre o manual e o automático, entre a produção humana e os robôs, foi que nos perdemos?

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Inteligência Artificial vs Estupidez Natural

Não é fácil, ou sequer possível provavelmente, apontar um momento específico para responder à pergunta final do parágrafo anterior. Pelo meio da transição da maioria das nossas tarefas e operações diárias para dentro de um mundo binário programado, de 0’s e 1’s, algo começou a ficar para trás. Tal como a brilhante pergunta do Simon Sinek: “Tu amas a tua mulher?” não tem uma resposta específica e é sim, comprovadamente positiva ou negativa face a uma sucessão de fatores através do tempo, acredito eu que nesta pergunta, enunciada acima, é o mesmo caso.

A inteligência artificial,um dos temas do momento, é algo que estamos a temer de alguma forma, por variadas razões. A original, raiz de todas? É a nossa falta de conhecimento sobre o assunto. Aquilo que nos é familiar e conhecemos, não nos assusta. É o desconhecido que faz isso. Numa frase engraçada que ouvi há uns tempos, “o escuro não nos assusta por estarmos sozinhos. É a hipótese de não estarmos que o torna tão assustador.” Isso é o desconhecido. É quando não sabemos o que habita a escuridão que está do outro lado do conhecimento que nos escapa. Pessoalmente, não sou alguém para vos falar de inteligência artificial porque também para mim é ainda um campo bastante escuro. Por outro lado, quero falar-vos de uma outra coisa que podemos obter com o contrário das duas palavras deste tema, e que desse sim tenho bastante entendimento, conhecimento e experiência. Se por um lado temos a inteligência artificial, do outro temos a estupidez natural. Grandezas que aumentam na mesma proporção, acredito.
(Eu avisei no início que esta publicação não ia ser muito meiga…)

O controlo das coisas, na realidade, nunca foi nosso. Concebemos definições e métricas para avaliar o tempo, porque nunca o conseguimos controlar. Fazemos incríveis construções, obras de engenharia e arquitetura megalómanas. Como as definimos? Desafiadoras da natureza, porque aí está mais uma coisa que não controlamos. Fomos deixando, ao longo do tempo, crescer dentro de nós esta necessidade irracional de ter tudo “sob controlo”. Bem, se me lês há tempo suficiente, sabes o que vou dizer a seguir. Acredito que controlamos duas coisas na nossa vida: as nossas ações e os nossos pensamentos (e dentro destes, ainda há uns que surgem para lá do nosso controlo, de forma automática e inconsciente). Nas sábias palavras de um dos meus mentores: “É quando aceitamos que não controlamos nada à nossa volta que estamos no controlo.”

Se tiver de arriscar responder à pergunta que propus, acredito que deixámos as coisas escapar e começámos a cultivar esta nossa estupidez natural no momento em que decidimos automatizar os nossos processos diários. Atenção, isso é só um estímulo. Porque o fator decisor de tudo é o inevitável tempo. A partir desse momento, em que decidimos, dia após dia, não só confiar nos aparelhos à nossa volta e sim deixar de treinar essas capacidades próprias, que entregámos o controlo. Não à inteligência artificial e sim à estupidez natural.

Eu uso o calendário do telemóvel. Uma aplicação para journaling, meditação e exercícios de respiração. Trabalho diariamente no meu computador e jogo xadrez nele. Uso as redes sociais e plataformas de comunicação digital numa base diária. Não quero ser hipócrita e dizer para erradicarmos tudo isto. Facilita-nos a vida, é um facto. Devemos aproveitar isso. E não sobrevalorizar esse facto. Há aplicações para fazer exercício e nos manter em forma. Não fazem o exercício por nós. A mente, apesar de ser um órgão, comporta-se como um músculo e precisa de treino também (para erradicar a estupidez que se começa a acumular nela, quando delegamos aos meios digitais a totalidade da nossa vida). Não é por conseguirmos pesquisar tudo no Google que devemos confiar nele para qualquer coisa. Porque na realidade, a maior parte das pesquisas vai trazer consigo muito “lixo informacional” que nos é desnecessário e contribui para o nosso já elevado défice de atenção. Já para não falar, novamente, que estamos a desperdiçar oportunidades para pensar, conceber ideias, ativar a memória e treinar a mente.

No final de contas, voltamos à palavra que define qualquer confronto entre duas partes na nossa vida: equilíbrio. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, nas palavras do ditado popular.

Devemos usar a tecnologia, a inteligência artificial até (após a estudarmos e conhecermos minimamente, claro), para aumentar a eficácia e produtividade na nossa vida. Não para nos facilitar. Quando procuramos o atalho, pela lei do menor esforço, significa que estamos a quebrar uma coisa inerente a nós: evolução. O fácil deixa-nos confortáveis. O que não nos desafia, não nos transforma.
Desta feita, fecho com esta observação: da próxima vez que tiveres a oportunidade de usar uma automação, qualquer que ela seja, questiona-te qual a utilidade dela e porque a estás a usar. Deixo-te um exemplo. Há alguns momentos atrás, respondi afirmativamente a um convite para um jogo de padel. Marquei no meu Google Calendar. Porquê? Porque é algo que me vai simplificar a vida e abrir espaço mental para, ao longo do dia, me focar no que é realmente importante para mim. Exemplo contrário: podia usar o ChatGPT ou outra qualquer ferramenta de inteligência artificial para pesquisar temas e até escrever estas publicações. Porque não o faço? Porque é um automatismo facilitador. É aí que, para mim, está a linha que separa as coisas. Facilita bastante, tenho a certeza. Liberta tempo, claro que sim. E onde está a emoção? A originalidade? A criação de um laço com o leitor ou o consumidor de conteúdo do outro lado?
Algo me diz, na minha intuição, que a inteligência artificial veio para nos fortalecer e transportar para um novo nível de evolução e da nossa vida. O que é verdadeiramente perigoso é o quanto nos vamos apoiar nela e permitir que ela tome as rédeas de coisas só para nos facilitar e continuarmos a cultivar a crescente estupidez natural que cada vez mais habita no mundo. A responsabilidade é tanto individual como coletiva. A falta de saber selecionar informação. O não sermos ensinados a pensar criticamente e sim a seguir normas cegamente. Tantos outros aspetos…

A originalidade humana, o que nos distingue de qualquer máquina ou criação que possamos fazer, com os meios e recursos que temos hoje em dia, é a emoção. O transpor desse conceito que não é binário e é irreplicável maquinalmente. É o fator diferenciador. O que conta. Não só esse, mas o próprio cocktail que reflete aquilo que somos: uma dose de mente, uma dose de emoção. Uma pitada de consciência presente e uma taça de consciência automática. Quantidades imensuráveis de vasos sanguíneos e alvéolos pulmonares. Órgãos atrás de órgãos. Mais três músculos por cada osso e alguma cartilagem para complementar. Acredito que percebem onde quero chegar.

Somos uma criação tão única e singular, que é impossível imaginar que seríamos substituídos por algo que criámos. É nossa responsabilidade não controlar e sim cuidar daquilo que fazemos e das dádivas que nos deram. Somos melhores, enquanto seres individuais e espécie coletiva, quando aprendemos e usamos os recursos (especialmente os internos) que temos para aquilo que servem, ao mesmo tempo que nos permitimos continuar a desafiar as nossas capacidades, de modo a crescer e evoluir, em conjunto com tudo aquilo que criamos e que nos rodeia. Todo o excesso esconde uma falta. Essa falta pode ser trabalhada e treinada para se tornar uma força e não uma fraqueza. Estamos continuamente a uma decisão de distância de uma vida completamente diferente.

O que já decidiste hoje para largar o controlo da vida e trabalhares as tuas capacidades, para confiares mais naquilo que és capaz e menos naquilo que não sabes ainda?

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Daniel Covas
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Written by Daniel Covas

Mental Coach, Behaviour Analyst, Digital Strategist. Beat the Mind Founder. https://www.instagram.com/danny_covas/

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